sexta-feira, março 24, 2006

Justiça para o faz-de-conta

Por Chico Queiroz

Uma liminar concedida pela Justiça Federal determina o extermínio de links em sites brasileiros para o jogo The Crims. Num prazo de cinco dias, contados a partir do dia vinte deste mês, de acordo com o estadao.com.br, deverão ser suspensos todos os websites que dêem acesso ao ou informações sobre o jogo.

Não entrarei na complicada discussão sobre direito e censura na internet. Prefiro chamar a atenção para o fato do material a ser censurado se tratar de um jogo. Não é a primeira vez que um episódio como este acontece sem ser debatido pelos orgãos de imprensa como o seriam caso envolvesse uma obra literária, televisiva ou cinematográfica. Tal relutância é visível, e até certo ponto compreensível, dada a falta de informação que se têm sobre formas de comunicação lúdicas, eletrônicas ou não.

Lembro-me imediatamente de dois episódios semelhantes: Já se cogitou proibir o Role Playing Game (ou apenas um dos sistemas comercializados) após a vinculação deste jogo de interpretação com a morte de um jovem, se não me engano, em Minas Gerais. No Rio de Janeiro, o jogo Counter-Strike, e as Lan-Houses que o disponibilizasse para o público, foram ameaçados com proibição semelhante. Fora do Brasil, o jogo Doom foi várias vezes responsabilizado por barbáries como o massacre de Columbine.

Tratam-se de casos diferentes, mas em comum há sempre um discurso que pressupõe a gravidade do ato cometido durante o jogo equivalente ao praticado no mundo real. Esta confusão, que sustenta as mais variadas acusações aos videogames, é perfeitamente compreensível - ainda que alguns entusiastas de games logo a descartem como sem sentido, o que não ajuda na discussão.

Jogos ocorrem, sim, entre realidade e ilusão. Essa ambiguidade, já apontada pelo educador Brian Sutton-Smith, foi recentemente explorada mais a fundo no campo dos jogos eletrônicos por Jesper Juul, teórico e designer de jogos. Segundo Juul, jogos estão situados entre regras reais e mundos fictícios. Ou seja: um jogador pode realmente ganhar pontos por cometer um ato criminoso fictício. Daí, e a partir do poder e participação do jogador, surge a confusão que leva a crer que um jogo como Doom tenha um poder de persuasão muito maior do que um filme como Pulp Fiction ou Sin City - que muitos críticos não cansam de elogiar, independente de seus conteúdos. No caso específico de The Crims, pode-se objetar quanto à facilidade de acesso ao jogo por parte de crianças e adolescentes impressionáveis. Afinal, o selo de advertência aos pais exibido na página inicial do jogo dificilmente será lido por aqueles a quem se destina. Não é fácil, no entanto, determinar qual a relação entre jogos violentos e comportamento anti-social entre seus jogadores: a todo momento estudos condenando e absolvendo video games se revezam nas mais diferentes publicações. No caso do Brasil, a equação se complica ainda mais: violência e atos criminosos semelhantes aos dos jogos são tão mais frequentes nos noticiários e na vida cotidiana que seria difícil negá-los como sendo uma influência ainda maior sobre os jovens. A brincadeira, como explicou Gilles Brougère, permite que a criança se aproprie da cultura e ambiente que a rodeia, funcionando como uma forma de aceitar e suportar esta realidade. Neste caso, a proibição do jogo Counter-Strike, particularmente sua fase que tem uma favela carioca como cenário, poderia tornar mais dificil a assimilação da violência real, diária e imperdoável a que uma criança está exposta nesta cidade. Mais do que ficção, Counter-Strike tem um caráter quase documental. Este argumento, claro, não pretende justificar a exposição indiscriminada de crianças a material de natureza violenta.

Há de se entender também certas particularidades deste meio de comunicação. Se há um número imenso de jogos retratando atos de violência, isso se deve em parte à natureza dos jogos em geral. Chris Crawford, designer de jogos e, incidentalmente, crítico do excesso de violência gratuita no meio, aponta a necessidade de conflito como motivo do uso exagerado da violência em jogos. Confrontos violentos seriam uma maneira fácil e imediata de ilustrar o conflito entre dois jogadores, ou entre um jogador e a máquina, no caso dos jogos eletrônicos. Tenta-se, hoje, buscar uma maior diversidade para o conteúdo dos jogos, que não haveria evoluído na mesma proporção de seus recursos tecnológicos. Esta, porém, é outra discussão.

O debate sobre os efeitos dos jogos sobre crianças não se encerra aqui. No entanto, fica evidente que cabe à Justiça, a mesma que se dedica a censurar jogos eletrônicos, o combate aos casos reais de crime, injustiça e violência, estampados diariamente nos mais diversos meios de comunicação, e dos quais a popularidade de tais jogos são mais sintomas do que causas.