quinta-feira, agosto 24, 2006

Falando sobre Molyneux - Parte 2/8

Para dar continuidade ao post passado, publicarei aqui a íntegra do artigo sobre o trabalho do designer Peter Molyneux e sua relação com o a alteridade. Este foi o tema de minha apresentação na FILE 2006 e também na 2a Conferência de Estudos de Videogames da Universidade da Florida.



Jogando o Outro:
Alteridade no Trabalho de Peter Molyneux


Por Chico Queiroz

Introdução: jogos de computador, conflito e o herói

Em seu livro clássico The Art of Computer Game Design, Chris Crawford elabora a idéia de conflito como sendo “um elemento intrínseco a todos os jogos” (Crawford, [1982] 1997:14). Conflito desempenharia um papel central em jogos, onde diversas partes se esforçam em atingir um gol ou vitória sobre outros participantes. Segundo Crawford, isto poderia explicar o recorrente uso de violência em video games - não por ser a violência crucial para jogos, mas por ser uma maneira óbvia de retratar situações de conflito. Consideradas as limitações técnicas sofridas por jogos de computador durante seus primeiros anos, seria justo dizer que esta era também uma das maneiras mais práticas, já que a violência física e belicosa poderia ser representada e simulada com uma economia de recursos que não seria possível para formas mais sutis de conflito. Também se poderia argumentar que formas exarcebadas de violência permeam o imaginário coletivo. De narrativas originadas em um remoto passado, como as presentes na mitologia grega, a formas culturais contemporaneas, como em filmes como Pulp Fiction e histórias em quadrinhos como Sin City de Frank Miller, a violência como forma extrema de conflito vêm fascinando a humanidade. Por sua interatividade, jogos de computador possibilitam que se jogue com a violência de maneiras que narrativas não permitem. No entanto, ainda segundo Crawford, antes de se permitir a tal atividade, o jogador deveria ser apresentado a uma justificativa para tais atos de violência. A desumanização do oponente é uma solução frequente. Crawford escreve: “Nós nunca aniquilamos seres humanos; ao invés disso, vaporizamos monstros espaciais feios”: (1997: 25). Robôs, fantasmas e outras criaturas fantásticas poderiam ser adicionadas à lista. Entretanto, pode-se discordar da afirmatiza, já que alguns video games permitem (e encorajam) o jogador a atacar contra a vida de um personagem humano como forma de progredir no jogo. Sejam os inimigos humanos ou não, uma justificativa usual para os atos do jogador é seu posicionamento como sendo heróico. Isto é geralmente estabelecido através de uma história prévia, cut-scenes e indicações visuais, reforçando quaisquer motivos o lado do jogador tenha para engajar-se em combate contra o inimigo.

Devemos lembrar-nos, agora, que a condição heróica pode ser subjetiva, como argumenta Joseph Campbell em seu livro The Power of Myth (Campbell e Moyers, 1988). Campbell enxerga um valor intrinsico em atos considerados heróicos, percebidos como tais de acordo com o ponto de vista do observador. O exemplo utilizado é o de dois soldados, um americano e outro alemão, ambos merecedores de uma condição “heróica”, a despeito do fato de estarem em lados opostos (1988:127).

De fato, o jogo America’s Army (U.S. Army, 2002), desenvolvido para o exercito dos Estados Unidos e jogado por grupos opostos pela Internet, é notório por não permitir que seus usuários joguem caracterizados como terroristas. Durante as sessoes do jogo, cada grupo se vê como o exercito americano, e ao grupo oponente como terroristas. Isto poderia se dar pela consciência, por parte do desenvolvedor, da identificação do jogador com os personagens que controla e sua associação com uma posição heróica. Em seu livro Half-Real, o pesquisador de jogos e teórico Jesper Juul aponta a relação entre os mundos ficcionais e as regras reais de que video games são feitos (Juul, 2005). Pode-se especular sobre este fenômeno e sugerir que ele ocorre também entre jogador real e personagem fictício, e que o ethos do segundo seria renegociado em razão da progressão do primeiro – e que durante o jogo, a personalidade do jogador nunca está completamente separada do personagem e vice-versa. Jogadores, de acordo com Juul, “querem ser capazes de se identicar com o protagonista ficcional e com o objetivo do jogo no mundo ficcional” (205, 161). Esta identificação foi também investigada por Jill Walker, que notou: “no discurso envolvendo jogos de computador (...) a diferença entre jogar e ser o protagonista é borrada.” (Walker, 2001: 18). Paradoxalmente, por sempre mostar o lado do jogador como moralmente defensável e outro lado como não sendo – a ponto de esta tornar-se uma convenção em video games – pode-se adotar uma posição auto-centrada e moralmente questionável, incapaz de reconhecer o outro além de tais valores.

Isto tudo não significa que todas as representacões de alteridade em jogos são mostradas como malignas, mas que isso ocorre frequentemente. Este elo entre o ‘outro’ e o ‘mal’, assim como o maniqueismo alí implicito, é um ponto central de uma série de trabalhos de Peter Molyneux, que agora se propõe investigar. Molyneux foi especificamente escolhido pela evolução de seu trabalho em torno do tema do bem e do mal, assim como pela representação de outras formas de alteridade em seus jogos.




Semana que vem: Populous

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